“Nesta profissão, trabalhando sozinho nas minhas pranchas, muitas vezes eu tenho a impressão de estar observando o mundo através de um vidro. De estar ‘à parte’. Desta vez, eu vou sentir o mundo na pele! É um risco, eu sei… Mas tão empolgante! Eu ia descobrir as terras proibidas por onde rondava a morte.”
Emmanuel Lepage
Em abril de 2008, mais de vinte anos após o desastre, um grupo de ativistas e artistas voltam a Tchernóbil para documentar a vida dos sobreviventes que vivem nas terras contaminadas. Uma dessas pessoas é Emmanuel Lepage, autor desse quadrinho, responsável por representar as paisagens brutais que por lá encontrasse.
Antes de embarcar, além do medo que pairava no ar, Lepage tinha outro problema. Havia algum tempo que ele estava sofrendo com dores nas mãos, algo que o impedia de realizar o seu trabalho com plenitude. Isso quase o levou a desistir do projeto, porém como o próprio autor afirmou, dessa vez ele quis sentir o mundo na pele.
Certamente, as primeiras imagens que nos veem à mente quando pensamos em Tchernóbil, são lugares dignos de filmes de terror, afinal, geralmente é assim que nos é retratado. E é justamente essa quebra de expectativa que faz Primavera em Tchernóbil ser tão interessante.
Legape também chega ao local com a expectativa de encontrar cenários apocalípticos, e isso pode ser percebido através da paleta de cores utilizada inicialmente, porém conforme ele vai descobrindo o lugar, as pessoas e as suas vidas, as cores vão se abrindo, ampliando as suas escolhas e tornando os desenhos cada vez mais claros e alegres. Aqui cabe uma observação, que arte incrível! O autor trabalha muito bem a representação dos ambientes, nos presenteando com verdadeiras obras de arte.
Também é interessante a maneira que o autor trabalha com os personagens na sua narrativa. Ele vai introduzindo sem pressa, tentando primeiro entendê-los para depois representá-los. Conhecemos um liquidador, nome dado aos funcionários que foram os primeiros encarregados de apagar o incêndio do reator, usando as próprias mãos para jogar grafite no prédio em chamas. Conhecemos um saqueador, que vive arriscando-se na zona de exclusão, para recuperar materiais que possa vender. Também conhecemos a sua mulher, uma moradora de vida simples e tranquila, entre outros.
O lugar ainda não está livre da radiação, e o autor faz questão de demostrar isso na história também. É frequente a preocupação dele e das pessoas que viajaram com ele, com medo de tocar nas coisas, medo de comer algo contaminado, medo de ir a algum lugar que possa estar muito contaminado.
Para os que não se recordam, um breve resumo sobre o acidente: em 26 de abril de 1986, o núcleo de um dos reatores da usina nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia derreteu, dando origem ao maior desastre nuclear da história. Uma nuvem carregada de radiação viajou por milhares de quilômetros contaminando mais de cinco milhões de pessoas.
Quebrando as expectativas que se possa ter em relação a Tchernóbil, Lepage nos mostra vida, nos mostra uma comunidade que pulsa, que festeja e que mesmo após tudo o que aconteceu, ainda sorri.
A edição brasileira foi publicada pelo selo Geektopia do Grupo Novo Século, em um formato grande (33 x 23 cm), capa dura, com 168 páginas, papel couché e um excelente acabamento.